Por este rio acima
1982
(:) É o mar que nos chama
(:)
O barco vai de saída
(:)
Porque não me vês
(:)
A guerra é a guerra
(:)
De um miserável naufrágio que passámos
(:)
Como um sonho acordado
(:)
A ilha
(:)
A voar por cima das águas
(:)
Olha o fado
(:)
Por este rio acima
(:)
O cortejo dos penitentes
(:)
O romance de Diogo Soares
(:)
Navegar, navegar!
(:)
O que a vida me deu
(:)
Lembra-me um sonho lindo
(:)
Quando às vezes ponho diante dos olhos
O barco vai de saída
O barco vai de saída
Adeus ao cais de Alfama
Se agora ou de partida
Levo-te comigo ó cana verde
Lembra-te de mim ó meu amor
Lembra-te de mim nesta aventura
P'ra lá da loucura
P'ra lá do Equador
Ah mas que ingrata ventura
Bem me posso queixar
da Pátria a pouca fartura
Cheia de mágoas ai quebra-mar
Com tantos perigos ai minha vida
Com tantos medos e sobressaltos
Que eu já vou aos saltos
Que eu vou de fugida
Sem contar essa história escondida
Por servir de criado essa senhora
Serviu-se ela também tão sedutora
Foi pecado
Foi pecado
E foi pecado sim senhor
Que vida boa era a de Lisboa
Gingão de roda batida
corsário sem cruzado
ao som do baile mandado
em terra de pimenta e maravilha
com sonhos de prata e fantasia
com sonhos da cor do arco-íris
desvaira se os vires
desvairas magias
Já tenho a vela enfunada
marrano sem vergonha
judeu sem coisa nem fronha
vou de viagem ai que largada
só vejo cores ai que alegria
só vejo piratas e tesouros
são pratas, são ouros
são noites, são dias
Vou no espantoso trono das águas
vou no tremendo assopro dos ventos
vou por cima dos meus pensamentos
arrepia
arrepia
e arrepia sim senhor
que vida boa era a de Lisboa
O mar das águas ardendo
o delírio do céu
a fúria do barlavento
arreia a vela e vai marujo ao leme
vira o barco e cai marujo ao mar
vira o barco na curva da morte
e olha a minha sorte
e olha o meu azar
e depois do barco virado
grandes urros e gritos
na salvação dos aflitos
estala, mata, agarra, ai quem me ajuda
reza, implora, escapa, ai que pagode
rezam tremem heróis e eunucos
são mouros são turcos
são mouros acode!
Aquilo é uma tempestade medonha
aquilo vai p'ra lá do que é eterno
aquilo era o retrato do inferno
vai ao fundo
vai ao fundo
e vai ao fundo sim senhor
que vida boa era a de Lisboa
Porque não me vês
Meu amor adeus
Tem cuidado
Se a dor é um espinho
Que espeta sózinho
Do outro lado
Meu bem desvairado
Tão aflito
Se a dor é um dó
Que desfaz o nó
E desata um grito
Um mau olhado
Um mal pecado
E a saudade é uma espera
É uma aflição
Se é Primavera
É um fim de Outono
Um tempo morno
É quase Verão
Em pleno Inverno
É um abandono
Porque não me vês
Maresia
Se a dor é um ciúme
Que espalha um perfume
Que me agonia
Vem me ver amor
De mansinho
Se a dor é um mar
Louco a transbordar
Noutro caminho
Quase a espraiar
Quase a afundar
E a saudade é uma espera
É uma aflição
Se é Primavera
É um fim de Outono
Um tempo morno
É quase Verão
Em pleno Inverno
É um abandono
Nota: Diário da viagem, Fernão Mendes Pinto
O meu desejo seria sair desta viagem muito rico em pouco tempo sem
pensar quão arriscada eu então levaria a vida, confiado
nesta promessa e enganado nesta esperança. Na cidade de Diu, preparava-se
então a guerra por suspeita que se tinha da vinda da armada do
turco. Parti de Portugal na Primavera e, navegando todos os barcos pela
sua rota, cheguei ao mar da outra banda do oceano. A Índia.
A guerra é a guerra
Salto no escuro
Entre dentes trago a faca
E nos meus olhos coloridos
Juro
Vem ver o fogo no mar
Os peixes a arder
Ó Ana vem ver
Ó Ana vem ver
Ó Ana vem ver
Voando em arco
Esgueiro o corpo num balanço
Como um piloto do inferno
Assalto
Nas asas guerreiras de um anjo
Seja louvado
Atacamos mui baralhados
Como um bando endiabrado
Por Jesus na sua cruz
Chora por mim ó minha infanta
Escorre sangue o céu e a terra
Ah pois por mais que seja santa
A guerra é a guerra
Coro:
Malaca Malaca
A guerra é a guerra
No céu e na terra
Nos dentes a faca
Avanço avanço
A guerra é a guerra
No céu e na terra
Balanço balanço
Cruzado cruzado
A guerra é a guerra
No céu e na terra
O mais enfeitado
Largar largar
O fogo no mar
Seja bendito
De todos o mais enfeitado
Olha pra mim o mais guerreiro
Ao vivo
Olha pra mim o teu amado
E o céu a arder
Ó Ana vem ver
Ó Ana vem ver
Ó Ana vem ver
Barcos em chamas
Erguidas
Parecia coisa sonhada
Queimados
Os gritos horrendos da besta
Ferida
E lá dentro ardiam homens
Encurralados
E cá fora à cutilada
Decepados
Pla calada
Pelos peitos já desfeitos
Chora por mim ó minha infanta
Escorre sangue o céu e a terra
Ah pois por mais que seja santa
A guerra é a guerra
(coro)
Foge saloio
Eh parolo
Aguenta António de Faria
E a fidalguia
Todo o massacre
E todo o desconsolo
Que já lá vem o Coja Acém
E o mar a arder
Ó Ana vem ver
Ó Ana vem ver
Ó Ana vem ver
Diz-nos adeus o pirata
O labrego
De cima daquele mastro
Trocista e airoso
Mostrando o traseiro cafre
Preto escuro de um negro
Levando-nos coiro e tesouro
Rindo de gozo
Perdeu-se o resto na molhada
Pelo estrondo
Na quebrada
No edema da gangrena
Chora por mim ó minha infanta
Escorre sangue o céu e a terra
Ah pois por mais que seja santa
A guerra é a guerra
Nota: Diário da viagem, Fernão Mendes Pinto
De Diu embarquei para o estreito de Meca, daqui fomos a Maçuá
e daí, por terra, ao Reino do Preste João. Passei ao Reino
dos Batas e de fugida pelo Reino de Quedá como adiante darei parte.
Em Patane conheci António de Faria, capitão a quem servi
na venda da mercadoria. Fomos atacados e roubados pelo perro do Coja Acém,
temido pirata depois que Heitor da Silveira lhe matara seu pai e dois
irmãos. Por isso, Coja Acém havia prometido a Mafamede matar
todos da geração de Malaca. Em pequenas fustas, enfrentei
também a grande armada do turco que bordejava na nossa esteira
com as velas quarteadas de cores e muitas bandeiras de seda.
De um miserável naufrágio que passámos
O escuro é muito grande
O tempo é muito frio
O mar é muito grosso
O vento é muito rijo
As águas são cruzadas
As vagas levantadas
Eh bruto corta-me esses mastros
Aguenta a popa e vira a proa
Ajusta-me esses calabretes
Baldeia fazendas à toa
Descarrega esse convés
Saltam braços
Voam pés
Vomitam pragas num estardalhaço
Os corpos atirados em pedaços
Dão à costa
Pela encosta
Choramos a nossa perdição
Dando muitas bofetadas
Em nós próprios sim senhor
Metidos num charco de água
Gritamos uma reza ao salvador
(6x) O escuro...
Salve-se agora quem puder
Por entre feridos e aflitos
Nas costas banhadas em sangue
Mordem atabões e mosquitos
Gritam mudos
Ouvem surdos
Em trejeitos absurdos
Um marinheiro de cabeça toda aberta
Cos miolos todos podres quase inerte
Num boeiro
Ai que cheiro
E abraçado a mim logo expirou
Com provas de bom cristão
O que muito nos consolou
Não ter de o levar às costas
Enterrado
Abençoado lá ficou
(6x) O escuro...
Estando nós em grande perigo
Num enorme desvario
Nadaram dois marinheiros
E a pouco mais de meio rio
Arremeteram conta eles
Dois lagartos muito grandes
Que os esfarraparam todos em bocados
Com a qual vista ficámos assombrados
Ai socorro
Ai que eu morro
Livra que nos fomos logo a pique
E subitamente ao fundo
Com um negro pela mão
Tão pasmado e caladinho
Mas lá por dentro a cantar o cantochão
Nota: Diário da viagem, Fernão Mendes Pinto
Depois que parti do Reino de Aaru, ali enviado pelo capitão
de Malaca na entrega de auxílio para a guerra deste rei contra
o inimigo achém, e quando dobrámos os ilhéus de Anchepisão,
deu-nos uma tão grande trovoada de noroeste que de todo nos teve
soçobrados com três rombos jnto da quilha. Os cinco que escapámos
com vida, passámos o que restava da noite postos assim de cócoras
sobre uns penedos, fazendo sobre eles um tristíssimo pranto, acompanhado
de muitas bofetadas que uns e outros davam em si mesmos, pelo triste sucesso
da nossa perdição.
Como um sonho acordado
Como se a Terra corresse
Inteirinha atrás de mim
O medo ronda-me os sentidos
Por abaixo da minha pele
Ao esgueirar-se viscoso
Escorre pegajoso
E sai
Pelos meus poros
Pelos meus ais
Ele penetra-me nos ossos
Ao derramar-se sedento
Nas entranhas sinuosas
Entre as vísceras mordendo
Salta e espalha-se no ar
Vai e volta
Delirante
Tão delirante
É como um sonho acordado
Esse vulto besuntado
A revolver-se no lodo
A deslizar de uma larva
Emergindo lá no fundo
Tenho medo ó medo
Leva tudo é tudo teu
Mas deixa-me ir
Arrasta-me à côncava do fundo
Do grande lago da noite
Cruzando as grades de fogo
Entre o Céu e o Inferno
Até à boca escancarada
Esfaimada
Atrás de mim
Atrás de mim
É como um sonho acordado
Esses olhos no escuro
Das carpideiras viúvas
Pelo pai assassinado
Desventrado por seu filho
Que possuiu lascivo
A sua própria mãe
E sua amante
Meu amor quando eu morrer
Ó linda
Veste a mais garrida saia
Se eu vou morrer no mar alto
Ó linda
E eu quero ver-te na praia
Mas afasta-me essas vozes
Linda
Tens medo dos vivos
E dos mortos decepados
Pelos pés e pelas mãos
E p'lo pescoço e pelos peitos
Até ao fio do lombo
Como te tremem as carnes
Fernão Mendes
Nota: Diário da viagem, Fernão Mendes Pinto
Como um sonho acordado "Embarcado num jurupango, com o Mouro Coja
Ale, feitor do capitão de Malaca, fomos surgir no rio de Parles
no Reino de Quedá. Nesse tempo, estava o rei celebrando com grande
aparato e pompa fúnebre as exéquias da morte de seu pai,
que ele matara às punhaladas para casar com a sua mãe que
já estava prenhe dele. Para evitar murmurações mandou
lançar pregão que sob gravíssimas mortes ninguém
falasse no que já era feito. Mas Coja Ale era de sua natureza solto
de língua e muito atrevido em falar o que lhe vinha à sua
vontade. E foi assim que preso por soldados fui chamado ao rei e olhando
para onde ele me acenava, vi jazer de bruços no chão muitos
corpos mortos todos metidos num charco de sangue. Entre eles o mouro Coja
Ale. Por mais de uma grande hora estive como pasmado, debaixo de abano,
sem poder falar, arremessado aos pés do elefante em que el-rei
estava. Depois de perdoado pelas lamentações e desculpas
toscas, mas que vinham ao momento muito a propósito, me fiz à
vela muito depressa pelo grande medo e risco de morte em que me vira".
A ilha
Olhamos tudo em silêncio
Na linha da praia
De olhos na noite suspensos
Do céu que desmaia
Ai Lua Nova de Outubro
Trazes as chuvas e ventos
A alma a segredar
A boca a murmurar
Descem em nuvens de assombro
Tainhas e bagres
Se as aves embalam os peixes
Em certos milagres
Levita-se o corpo da alma
No choro das ladainhas
Na reza dos condenados
Nas pragas dos sitiados
Da ilha dos ladrões
Quem sai?
E leva este recado ao cais
São penas são sinais
Adeus
Livra-me da fome
Que me consome
Deste frio
Livra-me do mal
Desse animal
Que é este cio
Livra-me do fado
E se puderes abençoado
Leva-me a mim a voar
Sobre o mar
Santo anjo
Vem
Peixe fresco
Cai
Meu arcanjo
Vai
E leva-me a voar
Pelo ar
Ó milhafre lindo
Ó linda gaivota
Dá-me o teu peixe
À mão
Coração bem-vindo
A voar pelo ar
Como se houvesse um encanto
Uma estranha magia
O Sol lentamente flutua
Nas margens do dia
Despe o meu corpo corsário
Seca-me a veia maruja
Morde-me o peito aos ais
Das brigas dos punhais
Andamos nus e descalços
Amantes sedentos
Se o véu da noite se deita
Na curva do tempo
Ai Lua Nova de Outubro
Os medos são meus
Das chuvas e ventos
Da alma a segredar
Da boca a murmurar
Adeus
Nota: Diário da viagem, Fernão Mendes Pinto
"Com António de Faria navegámos rumo à ilha
de Ainão, perseguindo o pirata Coja Acém que nos havia despojado
de tudo quanto tínhamos. Pelejámos e pusemos a tormento
o pirata Sililau e o Cafre Bastião. Descemos o rio Tinacoreu e
chegámos à enseada da Cochichina onde conhecemos o povo
temente da nação barbada que éramos nós. Soubemos
novas do Coja Acém pelos pescadores de pérolas do rei da
China. E, havendo já sete meses e meio que continuávamos
de um bordo ao outro, e de rio em rio, quis a fortuna que viesse um tempo
tão tempestuoso de chuvas e ventos que todas as quatro embarcações
vieram à costa e se fizeram em pedaços. Postos assim nesta
miséria, andámos nus e descalços por aquela praia
e por aqueles matos da ilha dos ladrões. Enfraquecidos pela fome,
febris e já desconfiados de todo o remédio humano, passou
por acaso, um milhafre que deixou cair das unhas uma mugem fresca. Subimos
então a um morro e pudemos ver uma grande quantidade desses milhafres
que desciam à água onde tomavam muitos daqueles peixes que
lhes caíam das garras com os gritos que nós lhes dávamos."
A voar por cima das águas
Ó ai meu bem
Como baila o bailador
Ó meu amor
A caravela também
Ó bonitinha
Ai que é das penas
É das mágoas
Sendo nós como a sardinha
A voar por cima das águas
Vai de roda quem quiser
E diga o que tem a dizer
Certo!
1º pirata:
Sonhei muitos muitos anos
Por esta hora chegada
De Lisboa para a Índia
Vou agora de abalada
Mas em frente de Sesimbra
Logo um corsário Francês
Nos atirou para Melides
Com o barco feito em três
E por Deus e por El-rei
Que grande volta que eu dei
Ó é tão lindo
Ó é tão lindo
Ó ai meu bem...
Ena que alegria enorme
Uns mais ou menos conforme
Certo!
2o pirata:
Mas que terras
Maravilha
Mais parece uma aguarela
Que eu vejo da minha barca
Branca azul e amarela
A Lua dormia ali
E com o Sol em tal namoro
Que as montanhas estavam prenhas
E pariam prata e ouro
Com Jesus no coração
Faz as contas ó Fernão!
Ó é tão lindo
Ó é tão lindo
Ó ai meu bem...
Mais cuidado no bailado
Que andamos tão baralhados
Certo!
1o pirata:
Nunca vi bichos medonhos
Tão soltos e atrevidos
Que nos fomos logo a pique
Com o bafo dos seus grunhidos
E todo nu sobre um penedo
De mãos dadas a rezar
Até me tremiam as carnes
Por os não ter no lugar
Ainda por cima a chover
Vejam lá o meu azar
Ó é tão lindo
Ó é tão lindo
Ó ai meu bem...
Eh valente rapazinho
A cantar ao desafio
2o pirata
Matei mouros malabares
Quem foi à guerra fui eu
Afundei grandes armadas
Nunca ninguém me venceu
Mas ao ver o cu de um mouro
Foi tal susto grande e forte
Quinté a bexiga mijei
E de todo estive à morte
Siga a roda sem parar
Que a gente vai a voar
Ó é tão lindo
Ó é tão lindo
Olha o fado
Eu cá sou dos Fonsecas
Eu cá sou dos Madureiras
De ferro o puro sangue
O que me corre nas veias
Nasci da paixão temporal
Do porto dos vendavais
Cresço no fragor da luta
Numa força bruta
Pra além dos mortais
Mas tenho muitas saudades
Certas penas e desejos
E aquela louca ansiedade
Como um pecado
Meu amor se te não vejo
Olha o fado
Ora é tão vingativo
Ora é tão paciente
Amanhã é comedor
Hoje abstinente
Mentiroso alcoviteiro
Doce e verdadeiro
Uma vez conquistador
Outra vez vencido
Amanhã é navegante
Hoje é desvalido
Sensual aventureiro
Doido e bandoleiro
Somos capitães
Somos Albuquerques
Nós somos leões
Os lobos do mar
De olhos pregados nos céus
De cima dos chapitéus
Somos capitães
Somos Albuquerques
Nós somos leões
Os lobos do mar
E na verdade o que vos dói
É que não queremos ser heróis
Nota: Diário da viagem, Fernão Mendes Pinto
Por conversa do pirata Similau e convencimento de António
de Faria partimos em busca da ilha de Calempluy, também chamada
a ilha do ouro, onde se encontravam os jazigos dos reis da China trasbordando
de prata e outras fortunas. Esta temerária empresa trazia-nos a
todos muito receosos, mas lá fomos levando o nome de Jesus na boca
e no coração. Como ministros da noite, os soldados saquearam
este lugar sagrado depois de dominado o ermitão. À vista
das minas de Conxinacau deu-nos um tempo de Sul chamado tufão que
era coisa medonha de ver. E foi nesta tempestade que morreu António
de Faria aos cionco do mês de Agosto pelo qual nosso senhor seja
louvado para sempre. Os nove que escapámos por misericórdia,
procurámos chegar por terra a Cantão para regressar a Malca.
Mas assim tão desamparados logo as gentes nos tomavam por ladrões
e vadios, e fomos feitos prisioneiros e levados a Pequim por apelação,
viagem que a seguir darei parte. Nesta adversidade semeou-se, apesar disto,
uma violenta contenda entre nós, nascida de uma certa vaidade que
a nossa nação portuguesa tem consigo.
Por este rio acima
Por este rio acima
Deixando para trás
A côncava funda
Da casa do fumo
Cheguei perto do sonho
Flutuando nas águas
Dos rios dos céus
Escorre o gengibre e o mel
Sedas porcelanas
Pimenta e canela
Recebendo ofertas
De músicas suaves
Em nossas orelhas
Leve como o ar
A terra a navegar
Meu bem como eu vou
Por este rio acima
Por este rio acima
Os barcos vão pintados
De muitas pinturas
Descrevem varandas
E os cabelos de Inês
Desenham memórias
Ao longo da água
Bosques enfeitiçados
Soutos laranjeiras
Campinas de trigo
Amores repartidos
Afagam as dores
Quando são sentidos
Monstros adormecidos
Na esfera do fogo
Como nasce a paz
Por este rio acima
Meu sonho
Quanto eu te quero
Eu nem sei
Eu nem sei
Fica um bocadinho mais
Que eu também
Que eu também
Meu bem
Por este rio acima
Isto que é de uns
Também é de outros
Não é mais nem menos
Nascidos foram todos
Do suor da fêmea
Do calor do macho
Aquilo que uns tratam
Não hão-de tratar
Outros de outra coisa
Pois o que vende o fresco
Não vende o salgado
Nem também o seco
Na terra em harmonia
Perfeita e suave
Das margens do rio
Por este rio acima
Meu sonho...
Por este rio acima
Deixando para trás
A côncava funda
Da casa do fumo
Cheguei perto do sonho
Flutuando nas águas
Dos rios dos céus
Escorre o gengibre e o mel
Sedas porcelanas
Pimenta e canela
Recebendo ofertas
De músicas suaves
Em nossas orelhas
Leve como o ar
A terra a navegar
Meu bem como eu vou
Por este rio acima
O cortejo dos penitentes
No cortejo dos penitentes
Vão culpados pecadores da gula
Vão culpados da sensualidade
Castigados até à medula
Vão os tíbios e frouxos no amor
Imaculados como o Criador
Vão culpados por abstinência
Vão culpados das suas carências
No cortejo dos penitentes
Os homens cortam suas próprias carnes
São ofertas que fazem aos céus
Ao mais alto de todos os céus
No cortejo dos penitentes
Os sacerdotes da austera vida
Vão contentes e muito enfeitados
Sobre as cinzas dos sacrificados
E cantam louvores
Ao Deus
Abranda Senhor
A pena dos mortos
Pra que te louvem
Com sono quieto
No cortejo
Os penitentes
Bebem tragos da bebida amarga
Da urina que depois vomitam
Pela noite mal aventurada
No cortejo
Os penitentes
Comem postas de sangue coalhado
Da sangria dos outros romeiros
Suavemente mutilados
E cantam louvores
Ao Deus
Nota: Diário da viagem, Fernão Mendes Pinto
Depois do degredo em Quansi, e como lhes demos ajuda nesta conquista
logo nos deixaram em liberdade. Estive na ilha de Tamixumá que
é a primeira terra do Japão. Da ilha dos Léquio,
e depois de muitas afrontas e medos, passei a Malaca e daí enviado
a Martavão onde fui feito prisioneiro de Bramás e cheguei
como escravo ao reino de Calaminhão. Durante a viagem, no templo
de Tinagógó, foi tempo de uma procissão de mais de
três léguas, tão espantosa e medonha, que parecia
coisa de encantamento.
O romance de Diogo Soares
Navegar, navegar!
Navegar navegar
Mas ó minha cana verde
Mergulhar no teu corpo
Entre quatro paredes
Dar-te um beijo e ficar
Ir ao fundo e voltar
Ó minha cana verde
Navegar navegar
Quem conquista sempre rouba
Quem cobiça nunca dá
Quem oprime tiraniza
Naufraga mil vezes
Bonita eu sei lá
Já vou de grilhões nos pés
Já vou de algemas nas mãos
De colares ao pescoço
Perdido e achado
Vendido em leilão
Eu já fui a mercadoria
Lá na praça do Mocá
Quase às avé-marias
Nos abismos do mar
Já é tempo de partir
Adeus morenas de Goa
Já é tempo de voltar
Tenho saudades tuas
Meu amor
De Lisboa
Antes que chegue a noite
Que vem do cabo do mundo
Tirar vidas à sorte
Do fraco e do forte
Do cimo e do fundo
Trago um jeito bailarino
Que apesar de tudo baila
No meu olhar peregrino
Nos abismos do mar
Nota: Diário da viagem, Fernão Mendes Pinto
"Nos vinte e um anos que duraram os meus infortúnios em que
por vários acidentes de trabalho que me sucediam, atravessei muita
parte da Ásia, como nesta minha viagem se pode muito bem ver, vivi
entre a abundância e a miséria, entre vencedores e vencidos,
sempre cuidando no regresso onde todas as minhas mágoas seriam
consoladas."
O que a vida me deu
Lembra-me um sonho lindo
Quando às vezes ponho diante dos olhos