Cronicas da terra ardente
1982
(5:30)
A travessia
(4:09)
Ao somdo mar e do vento
(5:04)
A deriva Porto Rico
(4:58)
Todo este ceu
(4:28)
Na ponta do cabo
(5:14)
A chusma salve - se assim
(6:23)
O mar
(6:18)
Recado a sofala
(4:11)
Gargalham muito as sarracenas
(3:55)
Os navegados
(3:33)
A cacada
(4:03)
A explicacao das flores
(5:34)
Diluidos numa luz
(4:04)
A tua presenca
(4:45)
E levantu-se o arraial
(4:19)
Os soldados do banco
(4:17)
Pela fome comidos
(8:03)
Manuel de Sousa sepulveda
(2:55)
Travessia ll
(7:54)
Ao longo de um claro rio de água doce
A travessia
Ao somdo mar e do vento
A deriva Porto Rico
Todo este ceu
Lembra-me um sonho lindo
Quase acabado
Lembra-me um céu aberto
Outro fechado
Estala-me a veia em sangue
Estrangulada
Estoira no peito um grito
À desfilada
Canta rouxinol canta
Não me dês penas
Cresce girassol cresce
Entre açucenas
Afaga-me o corpo todo
Se te pertenço
Rasga-me o ventre ardendo
Em fumos de incenso
Ai, como eu te quero
Ai, de madrugada
Ai, linda
Assim deitada
Ai, como eu te amo
Ai, tão sossegada
Ai, beijo-te o corpo
Ai, seara
Tão desejada
Na ponta do cabo
A chusma salve - se assim
Já anda a gente do mar
a fazer fardos e trouxas
arrombando porões
a roubar arcas e caixões
e abandonam as mulheres
os filhos desamparados
que choram muito assustados
sem outra consolação
que uns abraçados com outros
incham das águas aos poucos
dos tragos salgados da morte
imploram a Deus outra sorte
às arfadas
aos arrancos
em prantos
e às golfadas
e uns se afogam de vez
deixando-se ir ao fundo
e se entregam assim
ao sono mais profundo
outros gritam aos céus
pela absolvição
e se enforcam depois
com suas próprias mãos
perneando com a morte
as pernas descarnadas
feitas em rachas em lanhos
e tão estilhaçadas
que por esta parte em destroços
lhes vão caindo os tutanos dos ossos
e sem saberem nadar
sem a nau
sem tábua nem pau
vai o mundo adornar
cai ao mar
cai ao mar
Daquela
assada do barco
constroem seu salvamento
amarrou-se a gente ao troço
p'la cintura p'lo pescoço
indo assim tão carregada
ferem com facas e lanças
as mulheres as crianças
que se aferram à jangada
mas rezam avé-marias
padre-nossos litanias
p'las almas dos mutilados
que p'ra ali são abandonados
às arfadas
em arrancos
em prantos
e às golfadas
cheio vai o batel
e quase a afundar
p'ra alijarem a carga
botam gente ao mar
engole uma vez de vinho
e da marmelada um bocado
o pobre de um marinheiro
mesmo antes de ser lançado
deixou-se então atirar
com os braços cruzados
e se ofereceu todo à morte
tão quieto e calado
e o piloto logo abençoou
os seus dois filhos
que ele próprio lançou
e sem saberem nadar
sem a nau
sem a tábua nem pau
vai o mundo a adornar
cai ao mar
cai ao mar
Pequena era a tua filha
e não a quiseram salvar
ficou ao colo da ama
no barco grande a afundar
suplicas da jangada
enfim
ergues teus braços de mãe
mas não te escuta ninguém
a chusma salva-se assim
Gaspar Ximenes
calado
não chores alto
cuidado
tu chora só no coração
ou também vais como o teu irmão
às arfadas
aos arrancos
em prantos
e às golfadas
passam dias a fio
à pura fome e sede
E há quem vá tragando urina
e morra do que bebe
outros da água salgada
falecem dos sentidos
gritando sempre por água
lançam-se ao mar ressequidos
vai-se o soldado e o china
não fica dor nem mágoa
botou-se Estêvão mulato
com a mesma sede de água
e na tarde daquela aridez
atirou-se o padre
e o piloto outra vez
e sem saberem nadar
sem a nau
sem tábua nem pau
vai o mundo a adornar
cai ao mar
cai ao mar
Nota: História Trágico-Marítima
"Carregada a nau no fundo do mar por cobiça e cuidando então
que fosse ao fundo por quão rota e aberta ia, começaram por confessar-se
sumariamente a alguns clérigos, sem tino e sem ordem, que o confessor chega
a tapar a boca ao alienado que vai gritando alto os seus pecados. E a gente do
mar, por natureza inumana e mal inclinada, embarcava em jangadas que construíam
, roubando e destruindo tudo, e defendendo as embarcações dos quais
que as vinham demandar, à força das espadas e de safanões.
Foi o espectáculo deste dia o mais triste e lastimoso que se podia ver.
E aquela gente toda aos arrecifes agarrada, e que a maré enchendo os afogava,
bradavam pelos do batel e das jangadas nomeando muitos por seus nomes, toda a
noite num perpétuo grito tamanho que penetrava os céus."
O mar
Recado a sofala
Gargalham muito as sarracenas
Os navegados
A cacada
A explicacao das flores
Diluidos numa luz
A tua presenca
Eu já nada sinto
e afinal
eu gosto de não sentir nada
sozinho na calma das horas passadas
tão só numa outra quietude
num sossego tão so' sossegado
e esquecido
eu me esqueça de mim
aos bocados
adormece-me um sono dormente
que aos poucos se apaga
um sonho qualquer
mas não me acordes
não mexas
não me embales sequer
eu quero estar mesmo como eu estou
quietamente
ausente
assim
a viagem que eu não vou
nunca chega até ao fim
é longe
longe
tão longe
que de repente tu chegas
tu brilhas e luzes
na cor das laranjas
tu coras e tinges
a mancha da marca
na alma da luz
da sombra que finges
e tu já não me largas
saudade
tu queres-me tanto
e se eu lembro
tu mexes comigo
tu andas cá dentro
à volta do meu coração
no meu pensamento
também
e por mais que eu não queira
tu queres-me bem
e desdobras os mundos em cores
e levas-me pela tua mão
cativando o meu corpo
a minha alma
a razão
só a tua presença
é que me inquieta
aquela outra ausência
dói
como um passado projecta
aquele futuro que se foi
p'ra longe
longe
tão longe
que nunca se acaba
esta inquietação
se evitas momentos
já quase finais
e ficas comigo
ainda e sempre
um pouco mais
tu nunca me deixas
saudade
tu nunca me deixas
Nota: História Trágico-Marítima
"Entrados nas calmarias mornas daquela terra doentia por jazer debaixo
do Trópico de Cancro, dormíamos debaixo de árvores, estirados
nos matos, muito ausentes e numa prostração muito queda. E assim
estando nós, numa tarde, chegou um homem com quatro ou cinco laranjas
dizendo: 'Eis aqui a fruta da nossa terra'; com a qual se fez um novo pranto
e choro. E foi então que decidimos partir deste lugar onde estivéramos
todo este tempo com muito bom agasalho".
E levantu-se o arraial
Os soldados do banco
Pela fome comidos
Manuel de Sousa sepulveda
Travessia ll
Ao longo de um claro rio de água doce
E parecia aquele Tejo
este rio doirado
parecia até que tu vinhas
comigo a meu lado
ou seria das flores
e das matas cheirosas
das madressilvas dos frutos
das ervas babosas
E pareciam campinas
vales tão estendidos
pareciam mesmo os teus braços
que me abraçam cingidos
ou seria das silvas
do gengibre do benjoim
do cheiro daquela chuva
dos cacimbos enfim
porque haveria de ter
saudades tuas
ao longo de um claro rio
de água doce
E parecia verão
no imenso arvoredo
parecia até que dizias
qualquer coisa em segredo
ou seria dos dias
muito quedos
sem fim
das noites
muito melhor
assombradas
assim
porque haveria de ter
saudades tuas
ao longo de um claro rio
de água doce
Nota: História Trágico-Marítima
"E tomou-se a boca do rio de S.Lourenço, achando por novas que
numa povoação acima estavam alguns portugueses no resgate do marfim.
E foi-se por ele, muito quietamente, entre margens povoadas de altas e espessas
árvores que levam entretecidas os braços em formosa folhagem. E
as matas de diversas cores cheiravam a tigres, onças, leões elefantes
e gatos de algália. As flores em cachos amarelos fazem um suave rugido
que aos três sentidos enche e farta. Cheirava a oregãos, fetos, agriões,
poejos, malvas, alecrim... alecrim..."